Texto e fotos: Fernando Martinez
Pode soar forte, pode soar exagerado, mas na tarde de 12 de abril assisti o jogo mais perdido da minha vida. Poucos encarariam uma hora de trem até a perifa braba de Buenos Aires para acompanharem uma peleja num estádio que não seria liberado nem na Copa Kaiser e com times que não jogariam a Segundona Paulista. Já estive em abertura de Copa do Mundo e juro que ver 90 minutos de futebol desse naipe é algo tão magnífico quanto. O nível de alternatividade transformou a tarde em algo absolutamente especial. Foi o quarto cotejo da Magical Mystery Tour argentina em sua versão 2016.
A terça-feira começou com bastante frio e o céu nublado dava um destaque ainda maior para tudo que estava por vir. Como o destino da primeira partida da única rodada dupla que fiz era bem longe do centro, resolvi encarar o genial sistema de trens suburbanos. Afinal, uma jornada tão especial merecia ser curtida em todos os seus detalhes. Saí do meu hotel próximo do Obelisco e fui de táxi até a Estación Buenos Aires, meu ponto inicial. Inaugurada em 1911, ela fica do lado do campo do Barracas Central, como você ficou sabendo aqui no post de Fénix x San Telmo.
Uma coisa bem legal dos trens de Buenos Aires é que você informa na hora de comprar a passagem qual é o seu destino e a atendente calcula qual é o valor que devemos pagar. O preço aumenta conforme o percurso é maior. Me informei direitinho e vi que teria que fazer uma baldeação, e então, seguindo pela Linea General Roca, fui até a Estación Agustín de Elía e dali peguei outro trem até a Estación San Justo, que ficava relativamente perto do meu destino. Foi aí que a história começou a ficar ainda mais surreal.
Outro detalhe genial de praticamente toda a rede ferroviária da capital e adjacências é que não existem roletas, catracas ou afins. O que existe apenas são os trilhos (claro), a plataforma e a rua, tudo com acesso ilimitado. Na hora em que compramos o bilhete e informamos o destino, ficamos com um ticket com todas as informações. Se pintar uma fiscalização dentro do trem e você não tiver o abençoado papelzinho, o fiscal te tira do veículo na estação seguinte. Absolutamente Impossível imaginar algo levemente parecido com isso por essas bandas.
Detalhe da Estación San Justo, a mais próxima da casa do Liniers
Ao desembarcar na plataforma da San Justo (que estava em reforma) já estava na rua. Ali começava a minha hercúlea missão: encontrar o Estadio Juan Antonio Arias, casa do CSD Liniers. Não tinha a menor ideia em como procurar a cancha, já que a mesma não existe no Google Maps. É, por mais absurdo que isso seja, não há como encontrar o local virtualmente falando. Como o porteño Emerson Ortunho já tinha visitado o local ele me ajudou com alguns detalhes preciosos, como, por exemplo, o lado em que deveria sair da estação.
Quando saí vi uma dupla de policiais enquadrando dois bolivianos. Como eram os únicos por ali, fui buscar informação com a versão sul-americana do Starsky & Hutch. Enquanto um deles revistava os suspeitos como se fossem dois traficantes internacionais, o outro foi super solícito e me informou a direção aproximada que eu tinha que seguir. Nada muito concreto, porém já ajudou um pouco mais no meu intuito. A região é uma bocada e me pegava pensando a todo segundo que somente o futebol tem como nos levar a lugares assim.
Andei bastante - cerca de quatro quilômetros - e parei quatro ou cinco pessoas no trajeto buscando confirmar que estava seguindo meu caminho na boa. Cerca de meia hora depois vi o portão principal da humilde e espetacular casa do Liniers. Só que na pauta não estava uma partida dos locais na Primera C e sim uma apresentação do genial CSD Yupanqui no Campeonato Argentino de Primera D, a quinta divisão nacional. O adversário foi o CDS Juventud Unida de San Miguel, pela sétima rodada do torneio de transição.
O Club Social y Deportivo Yupanqui foi fundado em 1935 e somente em 1976 começou a participar dos torneios da AFA. Desde então, nunca deixaram de disputar a Primera D (em tempo: essa era a quarta divisão até a temporada 1986/87. A partir do campeonato seguinte, passou a ser a quinta). Junto com o Boca Juniors e o Tristán Suárez é uma das três equipes que nunca mudaram de divisão no futebol argentino.
Sem resultados significativos na sua história, eles se tornaram famosos nacionalmente em 2001, quando a Coca-Coca fez uma campanha publicitária mostrando o Yupanqui como o clube com menor torcida do país. Para terem uma ideia, na época, o recorde de público como mandante era de 96 testemunhas (!). O mote foi a perseverança e que, independente de todas as dificuldades, o time se mantinha se forma digna sonhando com dias melhores. Os cinco vídeos foram um sucesso enorme e o número de sócios triplicou. O Emerson visitou as dependências da agremiação em 2005 - junto com a do seu maior rival, o Lugano - e publicou aqui no blog. Vale a leitura.
O adversário do "Los Traperos" foi o Club Deportivo y Social Juventud Unida, outra figurinha carimbada das últimas divisões do nacional. Fundado em 1949, o clube de San Miguel debutou no profissionalismo em 1957. A maior parte das participações é na Primera D e apenas cinco vezes eles jogaram uma divisão diferente, no caso a Primera C. Na história foram campeões do Apertura 1997 e Clausura 1998 da quinta divisão. Um confronto desses em campo neutro era algo absolutamente perdido na sua essência.
Falando da peleja em si, vale dizer que o Estadio Juan Antonio Arias fica num enorme descampado numa região com aparência de abandono total. A fachada tem apenas um portão de ferro, uma pequena bilheteria e alguns carros que pareciam estar ali desde 1981. Paguei meu ingresso e ao ultrapassar a catraca pude assimilar o ambiente e me certificar que estava realmente no cotejo mais perdido dos meus quase 40 anos. O local tem apenas uma arquibancada, do lado oposto da entrada, e ali os cerca de 70 presentes se concentraram. Mesmo numa tarde fria de terça-feira (!), sempre vai ter alguém presente.
A humilde e espetacular fachada do Estadio Juan Antonio Arias e um portão lateral destacando o escudo do time
A espetacular lousa que informa aos hinchas do Liniers o calendário dos jogos
Vista da arquibancada de concreto, a principal do Estadio Juan Antonio Arias
Do lado oposto tem outra pequena arquibancada, muito mais modesta do que a principal
Eu fiquei sentado exatamente na linha do meio-campo. Lá não há cabines de imprensa e os periodistas presentes estavam colocados em cima dos dois bancos de reservas. Alguns corajosos acompanharam o duelo atrás do gol "de fundo", em meio a um grande matagal. A FPF certamente não liberaria o estádio nem para o Amador do Estado. Isso só tornou o cenário ainda mais legal, pois meu estado de êxtase era parecido de uma criança que acabou de receber seus presentes de Natal.
Acabei vendo 90 minutos bem legais em que o Yupanqui sempre foi superior ao seu adversário. Apesar de algumas jogadas ríspidas dos dois lados, os atletas do clube de Lugano estavam bem inspirados. No primeiro tempo, dois grandes momentos e em ambos o arqueiro visitante trabalhou bem. No intervalo, placar em branco e esperança de gols na segunda etapa.
Pelo alambrado, visão da arquibancada única do sensacional estádio do Liniers
Bola zanzando dentro da área do Yupanqui
Marcação firme da defesa do Juventud Unida em investida local pela direita
O camisa 11 do Yupanqui tocando de cabeça em chance no segundo tempo
Zagueiro visitante tirando a bola do seu campo na raça
A pequena torcida do Yupanqui levou vários trapos e confesso que deu vontade de pegar um e trazer pro Brasil. Como não sou de fazer esse tipo de coisa, fiquei apenas olhando de longe. se bem que nem chegaria perto dos hinchas. Eles não estavam muito felizes, pois mesmo com o melhor futebol apresentado, o fato de não terem vencido a meta adversária foi suficiente para reclamaram bastante. Nada com violência, só os velhos palavrões de sempre proferidos a plenos pulmões.
Na etapa final a blitz foi ainda maior e os avantes traperos metralharam o camisa 1 do Juventud Unida criando oportunidades atrás de oportunidades. Pena que esse amplo domínio não tenha se traduzido em gols. Os lobos vermelhos também tiveram seus momentos, sem que assustassem o arqueiro local. No fim, maravilhado por estar naquele ambiente, vi meu primeiro jogo sem gols na viagem, porém isso não tirou nada do brilho da magnífica tarde.
Como o Juan Antonio Arias não tem cabines de imprensa, os "periodistas" ficam em cima dos bancos de reservas
Chute da intermediária a favor do Yupanqui
Disputa de bola pelo alto em nova chegada local
O contraste dos uniformes foi um dos pontos altos da peleja no campo do Liniers
Saída rápida do Yupanqui para o ataque
Os trapos da pequena, porém sensacional torcida do Yupanqui
O placar final de Yupanqui 0-0 Juventud Unida tirou o onze local da liderança após sete rodadas realizadas. O novo líder é o El Porvenir, que derrotou o General Lamadrid por 2x0 e subiu pra catorze pontos junto com os Traperos, este à frente por terem maior número de vitórias. O Juventud permaneceu na oitava colocação com nove.
Ainda meio anestesiado pela inesquecível jornada não tive tempo a perder após o apito final. Precisava correr pois ainda tinha a chance de emplacar a segunda sessão futebolística do dia. Saí da última divisão do campeonato argentino para a Taça Libertadores da América em pouco menos de duas horas. Nunca pensei que veria um jogo da principal competição do continente fora do país e posso garantir que a experiência foi surreal.
Até lá!
@ 2019
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