Texto e fotos: Fernando Martinez
Na terça-feira, 12 de abril, sai da quinta divisão argentina para a Taça Libertadores da América em apenas uma hora e meia. Depois do genial Yupanqui x Juventud Unida pela Primera D aproveitei a deixa e segui da Estación San Justo com destino à Estación Buenos Aires, que fica pertinho do magistral Estádio Tomás Adolfo Ducó. Na base da raça fui tentar um ingresso de última hora para o confronto entre Huracán e Peñarol, válido pela penúltima rodada do Grupo 4 da principal competição de clubes no continente.
Já tinha tentado adquirir uma entrada para essa peleja no dia anterior e também antes de começar a jornada futebolística. Em ambas as oportunidades o local estava completamente vazio e não havia venda antecipada. Fiquei encucado e sabia que teria problemas na hora, mas como viajar para fora do país é sempre na base do tudo pelo social, vesti a camisa do "o não eu já tenho" e depois de desembarcar na estupenda estação de madeira fui a pé até a casa do Globo, na minha humilde opinião - e na do Emerson, expert em futebol argentino, também - a cancha mais bonita da Argentina.
O tamanho do Tomás Adolfo Ducó impressiona. Poucos estádios que visitei são tão imponentes quando ele. No destaque o nome "Huracán" na fachada principal
Andei cerca de um quilômetro e meio e logo estava na gigantesca Avenida Amancio Alcorta. O surreal é que, mesmo faltando cerca de 20 minutos para o apito inicial não havia absolutamente ninguém na rua. Ninguém MESMO. Nem cambista, nem torcedor, nem policial, nem vendedor ambulante. Para piorar, nenhuma bilheteria estava aberta. Ali pensei que meu sonho de ver um jogo do Huracán na sua majestosa casa estava indo por água abaixo. Foi quando prestei atenção e vi duas figuras que estavam perto de um carro estacionado próximo ao portão principal. Duas figuras que preenchiam todos os requisitos para serem cambistas.
Por sorte eles eram cambistas mesmo e como já estavam indo embora me venderam uma entrada por 1/3 do valor original. Uma grande sorte, certo? Mais ou menos. Quando cheguei no portão de entrada, descobri que era um ingresso para a torcida visitante. Não que não goste do Peñarol, mas a ideia de ver um jogo em Buenos Aires no meio dos visitantes não me apetecia muito. Sem muita escolha, nem cogitei ir embora. Na catraca um dos porteiros me alertou que parte dos torcedores carboneros "estavam roubando todo mundo" e que, por ser brasileiro, iria me ajudar. O simpático funcionário me colocou numa arquibancada lateral, longe dos uniformizados que estavam tocando o terror, junto com mais meia dúzia de escolhidos.
A primeira impressão que tive quando entrei no local foi espetacular. As arquibancadas são bem altas, bastante íngremes e a visão lá de cima é incrível. Poucas vezes nos meus anos de estrada fiquei tão impressionado num estádio de futebol. O magnífico local foi inaugurado com capacidade para 12 mil pessoas em 1924 e era todo de madeira. O primeiro nome era Estadio Jorge Newbery. Em 1941 o clube começou a construir arquibancadas de cimento e a capacidade foi ampliada. Seis anos depois, aconteceu a primeira peleja da nova fase - vitória do Huracán em cima do Boca por 4x3 - para absurdos 80 mil espectadores. Já em 1949, a reinauguração oficial, por coincidência num jogo contra o Peñarol. Em 1967 o nome foi alterado para o atual. Hoje a capacidade é de pouco mais de 48 mil pagantes.
No momento em que finalmente encontrei um lugar para ficar pude perceber que o funcionário me fez um enorme favor e por isso serei eternamente grato a ele. O setor central reservado aos visitantes estava um pandemônio só. Todos os uruguaios alucinados, cantando, dançando e arrepiando todos ao redor. Poucos estavam prestando atenção no jogo. Como eu estava de boca aberta e afinzão de acompanhar a peleja, fiquei no melhor lugar possível para assistir todas as emoções sem nenhuma interferência.
O duelo foi válido pela penúltima rodada do Grupo 4 da Taça Libertadores da América. O líder isolado e com 100% de aproveitamento era o Atlético Nacional. O Huracán tinha seis, o Sporting Cristal quatro e o onze uruguaio estava na lanterna com apenas um. O escrete oriental precisava vencer para ainda manter vivo o sonho da vaga nas oitavas. Um empate já eliminaria a outrora potente agremiação. Um triunfo do Globo garantiria a equipe entre as 16 melhores do continente.
Visão geral do magnífico Estádio Tomás Adolfo Ducó para um jogo de Libertadores
Não é toda hora que temos a chance de ver Libertadores na Argentina, ainda mais com o Peñarol em campo
A animadíssima torcida do Globo
Detalhe da parte nobre da casa do Huracán. O que as arquibancadas são íngremes não é brincadeira
A espetacular torre que fica acima das sociais da casa do Globo
Mais de 25 mil pessoas acompanharam um jogo bem movimentado. O tempo inicial foi agitado e o onze local quase abriu o marcador antes dos 20 minutos numa finalização pra fora de Mauro Bogado. Aos 22, Nández foi expulso e complicou ainda mais a missão uruguaia. Apesar de ter um a menos, o camisa 10 Diego Forlán, ele mesmo, arriscou alguns chutes, levando perigo à meta defendida por Marcos Díaz. Na base do olho no peixe, olho no gato, enquanto a bola rolava eu prestava atenção nos belíssimos detalhes da cancha. Faltam palavras para descrever como a cancha é espetacular.
Já no segundo tempo... ah, o segundo tempo. Os 45 minutos finais em Parque Patricios foram espetaculares. Desde 1996 vi um monte de jogo da Libertadores, mas nunca algo com tanta cara de anos 70. O Huracán voltou ao gramado buscando consolidar sua vaga, só que o camisa 1 do Peñarol Gastón Guruceaga se transformou no grande personagem da noite. Primeiro ele teve uma atuação debaixo das traves simplesmente fabulosa. O arqueiro desfilou uma série de defesas para todos os gostos: à queima-roupa, em tiros de longe e aos 25 ele defendeu três chutes seguidos, para o desespero dos hinchas argentinos.
Agora destaque para a rapaziada sempre gente fina, elegante e sincera torcendo pro onze uruguaio. Só maluco
Bola alçada dentro da área visitante
O Huracán tentou, mas não conseguiu furar o bloqueio uruguaio
Aquela treta marota após o apito final, pois sem ela a Libertadores não é a Libertadores
O duelo foi seguindo nesse cenário e nos acréscimos a coisa complicou de vez e vimos quatro minutos simplesmente sensacionais. O Huracán abriu o marcador aos 46 minutos, só que Ramón Ábila estava em posição de impedimento e o tento foi anulado. Na sequência, os atletas locais perderam o foco e o Peñarol se aproveitou. Num rápido contra-ataque o goleiro Marcos Díaz fez milagre e mandou a bola pela linha de fundo. Na cobrança, todo mundo foi para a área, inclusive o goleiro. E foi o próprio Guruceaga que completou de cabeça o cruzamento e fez o gol uruguaio. Só que o árbitro equatoriano anotou falta no goleiro local e anulou, fazendo com que a peleja terminasse com o placar de Huracán 0-0 Peñarol. O empate eliminou o clube preto e amarelo.
O clima já estava pesado e essa foi a deixa pro bicho pegar de vez. Os atletas dos dois times foram pra cima do quarteto de arbitragem e a pressão em cima do atrapalhado profissional foi enorme. A treta dentro de campo foi o ponto de partida para treta em tudo que é canto. Além da confusão no relvado, teve briga entre as duas torcidas, da polícia com os visitantes, da polícia com os locais e um clima de guerra surreal. Eu estava seguro lá no alto e vi de camarote as várias confusões, que estavam acontecendo de forma simultânea. Comprovando que os uniformizados carboneros realmente não eram amadores, vi de longe que eles desceram o porrete na tropa de choque da PFA. Isso definitivamente não é pouca coisa.
Levou cerca de meia hora para a poeira baixar e as coisas voltarem ao normal. Nesse meio tempo descobri que a torcida visitante - comigo incluído, claro - teria que esperar a boa vontade dos policiais para poder sair da cancha... aquela famosa questão de segurança. Enquanto esperava, desligaram os refletores e ficamos num breu sem conseguir enxergar praticamente nada. Depois disso, ainda foi quase uma hora até sermos liberados. Só que a noite ainda não tinha terminado.
Foi chegar na avenida e notei que os simpáticos homens da lei tinham feito um imenso corredor polonês para escoltar a saída de quem estava no setor visitante. Todos mal-encarados com seus escudos e seus cassetetes fazendo uma pressão psicológica poucas vezes vista pelo que vos escreve. Segui na via crucis por cerca de quinze minutos e no final da avenida fui liberado. O problema então passou a ser encontrar um táxi para retornar ao centro. Achei alguns que queriam cobrar um valor absurdo e levei mais meia hora para achar um motorista legal o suficiente para deixar o taxímetro rodar sem pilantragem.
Mais de dez horas depois de sair para a rodada dupla cheguei no meu hotel muito cansado. Não foi fácil, mas valeu muito a pena. O saldo da terça-feira foi de dois jogos, nenhum gol, quatro times novos na Lista e muita história para contar. Na quarta não parei e voltei à ativa com mais Libertadores, agora num clássico portenho que nunca imaginei que teria a chance de ver ao vivo.
Até lá!
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