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sexta-feira, 24 de junho de 2016

JP na Argentina 16 (8/9): O (novo) jogo mais perdido da história

Texto e fotos: Fernando Martinez


Você viu aqui no Jogos Perdidos que o Yupanqui 0-0 Juventud Unida, quarto capítulo da minha Magical Mystery Tour pela Argentina, foi o mais perdido da minha vida. Como recordes existem para serem batidos, apenas seis dias depois consegui o impossível e superei gloriosamente essa marca. Sem medo de errar, a minha jornada de 18 de abril de 2016 agora está no topo. Dizer que foi uma jornada insólita, bizarra e histórica é pouco para resumir o que vivi na fria tarde daquela segunda-feira.

Por conta dos cancelamentos feitos pela AFA em todas as divisões do campeonato nacional, sobraram duas opções para manter a agenda futebolística em atividade. Uma delas com dois clubes novos e um estádio já visitado (o campo do Liniers) e a outra, também com dois times, porém com a pequena diferença por ser numa cancha inédita. Confabulei bastante e escolhi a segunda opção. Essa escolha quase se mostrou um erro enorme por conta de um pequeno grande detalhe que será citado em breve.

Como meu destino ficava a 30 quilômetros do hotel, outra vez encarei o sistema de trens da capital federal. Da magnífica Estación Constituición, localizada próxima ao centro de Buenos Aires, passei por Avellaneda, Sarandi e Quilmes e ali tive que desembarcar. Por conta de uma obra no sistema, fui obrigado a seguir viagem até meu destino final num ônibus podrão dos anos 70 que estava caindo aos pedaços. Demorou mais do que imaginava, mas quarenta minutos depois cheguei na bonita Estação Beratazegui, construída em 1870. Esse foi apenas o começo da história.

A ideia era percorrer a pé os 1.200 metros dali até o Estadio Norman Lee, casa da AD Berazategui, só que decidi pegar um táxi por conta da chuva. Tudo para não perder nenhum detalhe do duelo do onze laranja contra o líder Deportivo Laferrere válido pelo Campeonato de Primera C. O taxista me deixou a cerca de quatro quarteirões do portão principal pois tudo estava interditado pela polícia. A partir daí notei algo estranho no ar. pois o horário do apito inicial estava chegando e tinha muita gente zanzando pelas redondezas sem nenhuma pressa.


Fachada do acanhado e espetacular Estadio Norman Lee com destaque para integrantes da tropa de choque

Fui arranjando espaço no meio da muvuca até que, faltando meio quarteirão para chegar no Norman Lee vi uma enorme barreira policial ao redor da casa laranja não deixando ninguém passar. Me senti no meio de uma guerra, tamanha a quantidade de homens da lei fortemente armados na região. Perguntei para um deles como faria para conseguir um ingresso. O estressado integrante da PFA foi bem mal educado e mesmo assim me deixou passar. Disse para buscar a informação com alguém na entrada. 

No portão perguntei a dois fiscais como seria possível comprar um ingresso e ambos, com uma falta de educação assombrosa, disseram que não era possível e que ninguém mais entraria. Foi somente quando perguntei a uma terceira pessoa que entendi o que estava acontecendo. As apresentações do Berazategui não tem venda de ingressos para torcedores comuns, e somente sócios podem acessar as dependências da praça de esportes. Demorei alguns segundos para absorver a informação e no momento em que isso aconteceu, o mundo desabou na minha cabeça.

(Em tempo: Descobri depois que por causa de inúmeros momentos violentos com os seus hinchas, a AFA e a polícia local decidiram que a equipe não atuaria mais na sua casa a partir de 2012. Assim, eles jogaram como mandantes em nove estádios diferentes. Quando começou a temporada 2016 eles foram autorizados a retornar ao Norman Lee sob condições específicas. A principal delas era que os ingressos seriam comercializados apenas para sócios e sem venda geral. Isso para o poder público saber com antecedência o nome de todos os presentes. Uma forma de evitarem confusões dentro das dependências da casa laranja.)

Inconformado por estar tão longe e prestes a ter que voltar ao meu hotel sem conseguir colocar dois times geniais na Lista e sem visitar um campo tão alternativo, na base do "o não eu já tenho" comecei a pensar numa alternativa para tentar não jogar fora a tarde. Uma coisa que aprendi em todos os anos de JP foi que, independente do número de portões fechados que um estádio tenha, sempre vai ter um aberto em dia de jogo. Dito e feito: havia um nos fundos que servia de entrada para o estacionamento de dirigentes.

Quem estava tomando conta do local era o Gastón, diretor que naquela tarde estava responsável pelo estacionamento. Fui conversar com ele e falei sobre todo o esforço para estar ali naquele momento e contei a minha história em detalhes. A resposta que tive foi um "espere aqui que vou ver o que consigo" e então ele sumiu. Passados cerca de cinco minutos escuto meu nome sendo gritado num portão perto dali. Fui até lá e ele me deixou entrar, primeiro me levando até o setor reservado à torcida do Laferrere. Ainda sem saber o que estava acontecendo direito, o próprio Gastón me "transferiu" pouco depois para o setor principal das arquibancadas do Norman Lee.

Quando estava subindo para buscar um lugar na arquibancada de ferro que fica no centro do gramado perguntei o porquê dele ter feito todo aquele esquema monstro por mim. Ele disse que foi barrado no Holanda x Argentina da Copa do Mundo de 2014 e sabia bem como era decepcionante viajar tanto e ser impedido de ver um jogo. Nem preciso dizer o quanto o agradeci. Não liguei para a temperatura de 12 graus (e sensação de sete), a chuva que não parou por um minuto sequer ou qualquer outra coisa. Estar naquele local com cerca de quatro mil pessoas (!) numa segunda-feira à tarde é algo único e que simplesmente não existe no Brasil, o tão falado "país do futebol".

Após o enorme perrengue, finalmente pude sossegar a alma para ver o confronto que estava com cerca de 10 minutos de bola rolando. A peleja foi uma das primeiras do Berazategui ali desde que o local foi reaberto dois meses antes. Falando de história, a equipe foi fundada em 1975 e se filiou à AFA no ano seguinte. Um ex-gerente da Coca-Cola, Norman Lee, doou parte do terreno da fábrica para que o clube pudesse ter um lar próprio.

Logo no ano de estreia, jogando a Primera D, eles conquistaram o acesso para a Primera C, Em 1986 subiram para a Primera B Metropolitana, certame que disputaram sete vezes. Desde a temporada 2008/2009 eles estão no quarto nível do futebol portenho. Na história, já foram campeões desse certame em 1989/1990 e também do Apertura 1996. Também foram campeões do Apertura 2006 da Primera D.

O adversário do escrete laranja foi o Club Social y Cultural Deportivo Laferrere, fundado em 1956 e também novo para os padrões argentinos, somente em 1978 se profissionalizou. Em doze anos eles saíram da Primera D e chegaram até a Primeira B nacional, um pulo da quinta para a segunda divisão. Com a queda na temporada 1994/1995, alternam participações na B Metropolitana e a Primera C. Nesta última foram campeões em 1986/1987 e 2001/2002.

Das dez rodadas realizadas da Primeira C 2016, um dos vários torneios de transição do Campeonato Argentino, Berazategui e Deportivo Laferrere estiveram na liderança respectivamente em três e seis delas. Os locais estavam em segundo com 20 pontos (seis vitórias, dois empates e duas derrotas) e o Lafe na liderança com 22 (com um triunfo a mais e um empate a menos). A expectativa era enorme, principalmente da massa laranja que tomou conta do Norman Lee. Um triunfo simples significava a liderança isolada para o Bera e seus hinchas não esperavam menos do que isso.

O frio que congelava todos os presentes na parte nobre da cancha, inclusive o que vos escreve, também interferiu na atuação dos 22 atletas no encharcado relvado. A etapa inicial foi repleta de jogadas imprecisas e muita dificuldade na construção de ataques. Praticamente nenhum momento foi digno de registro. Mas eu, espremido no meu ensopado casaco e com uma temperatura baixa como poucas vezes peguei num cotejo não estava nem aí. Os mais animados do setor atrás do gol da entrada também não queriam saber se estava 8 ou 40 graus e pulavam e cantavam - sem camisa, claro - como se não houvesse amanhã.


Ataque do Laferrere pela direita quando eu ainda estava na torcida visitante


Lance no campo de defesa do onze visitante


Outra investida do Laferrere, mas agora eu já estava na parte "nobre" do Norman Lee


O frio que fazia nesse momento era intenso, além da chuva fina que caía em Berazategui. Mesmo assim, a cancha estava lotada

Os agraciados com um lugar no principal arquibancada (oriunda do Velho Gasômetro, antiga casa do San Lorenzo) também estavam animados, só não chegavam ao ponto de ficarem desprotegidos do frio. Pena que a rapaziada que estava ali deu uma leve murchada no tempo final. O Laferrere retornou ao gramado bem melhor, se aproveitou dos erros do seu adversário e controlou o jogo. Aos nove minutos Maximiliano Mallemaci ganhou da zaga e chutou cruzado para abrir o marcador.

Na sequência Gómez teve a maior chance laranja em toda a partida e falhou na hora de finalizar. O Deportivo não quis dar sopa pro azar e no lance seguinte definiu a sua sorte. Tortuga Fernández chutou de longe, o goleiro González soltou a carne e García deu números finais ao confronto. Os molhados hinchas localizados atrás do gol de entrada continuavam empolgadíssimos sem camisa, agora sob uma sensação térmica de seis graus, e com 2x0 contra no lombo. Admiro demais essa rapaziada, já que nem nos meus tempos áureos de torcedor conseguia ter essa animação. Antes do apito final, uma leve briga com alguns integrantes da simpática PFA só para não perderem o costume, claro.


Para terem uma ideia de como a torcida do escrete laranja é barra-pesada, dá para ver que, mesmo só com sócios presentes, a tropa de choque faz marcação cerrada


O bonito colorido do duelo entre Berazategui e Deportivo Laferrere


Disputa de bola pelo alto


Ataque pela esquerda do Bera. Pena para os quatro mil presentes que o time não tenha feito uma partida muito boa

O placar final de Berazategui 0-2 Deportivo Laferrere manteve o Villero na liderança com 25 pontos, Os laranjas continuam na segunda posição com 20, seguidos de perto pelo Argentino de Quilmes e pelo Excursionistas com 19. Com o fim do encontro, fui andar pela cancha, algo que não tinha feito antes por conta de todo o perrengue. Reencontrei o Gastón e fiquei conversando com ele sobre histórias da agremiação. A conversa durou quase meia hora e foi interrompida pois o dia estava terminando e, de acordo com ele, "quando a noite cai quem não é da região é certamente assaltado". Sem querer pagar pra ver, peguei o caminho até a estação de trem rapidinho não sem dar um grande abraço ao personagem principal da jornada.



Dois detalhes da Estación Berazategui, pouco antes dos simpáticos policiais me interpelarem e me obrigando até a mostrar meu passaporte

Foram 20 minutos a pé debaixo de chuva pela Calle 15 até chegar de novo na estação de trem. Como não estava com pressa, aproveitei para fazer fotos do local até ser interpelado por dois policiais. Os homens da lei disseram que eu não era autorizado a tirar fotos ali e fui obrigado a mostrar até meu passaporte. Me senti na Cisjordânia. A dupla me liberou com uma má vontade dos infernos e só após disso peguei o caminho de volta. Foi a mesma coisa da ida: o busão dos anos 70 até Quilmes e dali o trem até o Terminal Constituición. 

No caminho, passei pela Estação Sarandi bem no momento que Arsenal x Belgrano de Córdoba estava começando. Como não vendem ingressos da primeira divisão no dia da partida, fiquei na vontade. Mas tudo bem, já que a minha missão futebolística tinha sido cumprida com louvor. O cotejo em Berazategui não foi o ultimo da Magical Mystery Tour e, na última noite em Buenos Aires, ainda deu tempo de colocar outro time na Lista.

Até lá!

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